A falar, nos entendemos



   Ficamos ali algum tempo. A música não terminaria, apenas se iria repetir, decidi nada mais forçar. Tinha o ombro dele, uma verdadeira conquista e a recordação tão viva de um primeiro beijo impossível de esquecer.
   – Estava aqui a pensar... – disse ele pondo fim ao silêncio.
   – Em quê? – perguntei interessada.
   – Na data, no lugar, na hora do qualquer dia... – disse Santiago.
   – Sério? – perguntei surpreendida – Parece-me muito bem, já tardava! Já agora, também estava aqui a pensar em duas coisas... – informei.
   – Primeira: – disse ele para que eu a identificasse.
   – Porque nos continuamos a tratar por você? – questionei.
   – Certamente por hábito. O Homem é um animal de hábitos. – começou por dizer – Se preferir pode tratar-me por tu...
   – Você a mim também. – interrompi.
   – Mas lá no Banco não, por favor. – pediu ele. Naturalmente aceitei.
   Eu compreendia o pedido dele, já percebera que ele levava o trabalho muito a sério, com rigor, percebi isso em definitivo quando fui ao encontro dele no Banco para lhe pedir satisfações. Lembrava a sua secretária numa arrumação e ordem muito cuidada. Caprichosa. Muito profissional em toda a sua postura.
   – E a segunda: – disse ele para que eu continuasse e finalizasse a enumeração.
   – O dia qualquer não pode ser o sábado que vem. – informei.
   – Então, já tem... Já tens coisas marcadas, é isso? – perguntou.
   – Digamos que temos um compromisso. – disse sorrindo, sublinhando oralmente o temos.
   – Sério? Ainda não recebi qualquer comunicação. – disse ele entrando no jogo.
   – Você... Tu vais comigo à inauguração de um lugar chamado Chá, Vinho e Outros Afetos. – disse, não comunicando, mas quase ordenando.
   – Bem, ao que parece temos dia e local... só falta mesmo a hora. – conclui ele.
   Não me contive, levantei a minha cabeça do ombro dele e fui beijá-lo na boca. Timidamente, Santiago lá foi correspondendo.
   – Como estás? – perguntei com bastante seriedade assim que paramos de nos beijar.
   – Não sei, é tudo ainda muito confuso, até me sinto bem a espaços, mas estou aterrorizado com tudo isto. – confessou – Há instantes que quero estar aqui e outros em que me apetece fugir, sair daqui a correr...
   – Podes ficar o tempo que quiseres, se fugires eu vou atrás de ti. – disse com algum humor, mas também séria e convicta do que dizia.
   Ele sorriu, mas percebi que foi forçado.
   – Elisa, eu não a quero magoar, de todo não quero nem tenho tal direito, e o pior de tudo é que não posso prometer não o fazer, não posso prometer nada. – disse com toda a sinceridade.
   – Compreendo e agradeço a preocupação, é prova de boa índole, mas não é só você... não és tu que estás neste barco. – assumi parte da responsabilidade, duma responsabilidade que era mútua e não apenas dele.
   – Temo não corresponder ao que espera... ao que esperas de mim. – disse com tristeza – Não é justo, há pouco senti-me a trair Laura, mas também a ti...
   – Santiago... – chamei.
   – Deixa-me falar. – pediu ele. Deixei.
   – Temo estar a confundir coisas, sentimentos, há muito que não estou com ninguém, temo que possa ser uma coisa só física e só isso não quero que seja... – concluiu.
   – Nesse aspeto não se preocupe... não te preocupes. – corrigi – Para além de ser já crescida, de saber o que quero e o que não quero, e muito embora por motivos e histórias de vida diferentes, estamos, na prática, em iguais circunstâncias. – contra-argumentei.
   – Temo que seja necessário teres muita paciência comigo e no fim dar em nada, percebes? – questionou olhando-me.
   – Vamos pensar a curto prazo, não adiante viver de outra forma, tens que perceber que não és o único a carregar todas as responsabilidades. Eu estou aqui, tu estás na minha casa, na minha vida porque eu quero. – disse com toda a convicção.
   Ele olhou-me fixamente, mas mais nada disse.
   – Escute bem: porque eu quero... – disse em absoluta convicção.
   Santiago, ergueu uma mão, esta acariciou o meu rosto, depois ajeitou uma madeixa do meu cabelo.
   – E agora quero um beijo lento... – disse-lhe indo ai encontro dos lábios dele.

* * *

   Percebi várias coisas.
   A primeira era que não ia conseguir tratá-la por tu assim de uma momento para o outro, mas com o tempo lá chegaria... Falando de tempo, da perspetiva de Elisa ter chegado para ficar, ainda não encaixara na minha cabeça.
   Era difícil o nós, era complicado aceitar uma perspetiva temporal longa. Parecia que aquilo que estava a acontecer era como que passageiro e que depois tudo voltaria a ser como antes, antes de Elisa aparecer. Tinha uma convicção, um medo de não ser capaz de ultrapassar os meus traumas e voltar para trás, deixando por isso Elisa magoada... e isto deixava-me mal, com sentimentos de culpa por o que podia vir a causar de mal.
   Não havia dúvidas que eu a estava a desejar, mas porque era assim? Era a pergunta que me ocorria e preocupava. Temi que pudesse ser apenas porque há muito estava só. Estaria assim como que a aproveitar-me dela, a usá-la, e isso não era certo. Ela parecia realmente estar a gostar de mim, não vou dizer que isso não era do meu agrado, o que me assustava era não vir a sentir algo igual.
   Mas, em termos gerais, apesar de tudo, eu queria estar ali. Queria estar mais vezes com ela. Pior era o que sentia quando estava, as dúvidas, as incertezas, o receio constante de não ser capaz e de a vir a magoar. A vontade por vezes extrema de sair dali e rumar à minha vida anterior.

* * *

   Beijamo-nos calmamente, como no início. Gostava de o beijar assim e ao som de piano, era idílico.
   De repente, sem nos deixarmos de beijar calma e docemente.
   – Como quer que vá vestido? – perguntou Santiago.
   – Hum! – sonorizei continuando a beijá-lo.
   – Formal, informal... – sugeriu ele para que eu escolhesse.
   Parei de o beijar para decidir.
   – Formal, você... tu ficas muito bem, tens um corpo perfeito para usar fato. – escolhi justificando a minha escolha.
   – Está bem, assim será... – aceitou ele.
   – Santiago, não quer ficar cá em casa? – perguntei.
   No instante seguinte arrependi-me. Maldita espontaneidade.
   – É melhor não. – disse sinceramente – Tenho que ir para o meu canto, preciso pensar...
   – Desculpa, estou a precipitar-me, a pensar mais no meu bem-estar do que no teu... no que tu estás a passar. – disse arrependida.
   – Preciso encaixar tudo o que se passou hoje, é muita coisa em tão poucas horas. – continuou ele a sua justificação. Tinha toda a razão.
   Sentia-me bem com ele, não o queria perder, agora que estava cada vez mais certa do que sentia. Estava disposta a lutar por ele, pelo amor dele. Por lhe mostrar que a sua vida não terminara com a morte de Laura, que tinha que deixar de pensar como pensava.
   – Mas fique mais um pouco. – pedi fazendo uma expressão terna.
   – Sim, eu fico mais um pouco. – disse com um ligeiro sorriso.
   Deitei a minha cabeça sobre o ombro dele. Santiago abraçou-me e beijou a minha testa. Ficamos assim durante bastante tempo, a ouvir a música, mas eu tinha ainda uma coisa a dizer-lhe, a pedir-lhe.
   Então falei sem me mexer da posição em que estava.
   – O meu pai dizia sempre, sobretudo quando eu andava mais calada, que é a falar que nos entendemos. – disse recordando – Promete-me que vais sempre falar comigo sobre o que sentes, acima de tudo quero que sejamos amigos, que possamos contar um com o outro, não fujas... porque eu irei à tua procura. – finalizei.
   – Obrigado! – disse ele.
   – Porquê obrigado? – perguntei.
   – Pela paciência, pela perseverança... – respondeu Santiago.
   – Gosto de si... – confessei – É incondicional, não o faço porque o quero deliberada e conscientemente, mas porque é o que deve ser feito.
   Santiago nada disse, mas o seu braço abraçou-me firmemente. Ficamos assim mais algum tempo, mas depois lembrei-me que ele havia deixado um assunto como que a meio e eu não podia deixar de o lembrar.
   – Santiago, mas há pouco, por culpa minha, acabou por não me falar dos pormenores do seu qualquer dia... – lembrei.
   – Pois não! – concordou ele.
   – No que é que estavas a pensar? – perguntei curiosa.
   – Bem, se calhar não vou revelar já... – decidiu ele naquele instante – Será uma surpresa. Gosta de surpresas?
   – Hum! Confesso que não sou propriamente fã de surpresas, muito menos de saber da existência dessa surpresa e que ela pode acontecer a todo o momento, deixa-me nervosa e não gosta nada dessa sensação. – disse.
   – Então, está decidido, será surpresa. – disse ele com alguma malícia.
   Dei-lhe um beliscão. Ele sonorizou a dor, mas nada demais.
   – Você não sabe com quem se está a meter. – ameacei.
   – Que medo! – disse ele rindo.
   – Espero que seja uma surpresa realmente boa, senão... – ameacei sem definir a ameaça e beijei-o.
   Voltamos a ficar calados, abraçados, a ouvir a música.

* * *

   Tentava estar ali e estar bem, sentir una e exclusivamente aqueles momentos, o presente, mas a verdade é que não consigo explicar o que sentia. Parece-me impossível de explicar, a melhor forma de dizer o que vivia em mim... É dizer que me sentia muito bem e muito mal ao mesmo tempo, como se fosse possível isso ser uma mesma sensação. Sim, queria ficar, estar ali e em mais nenhum outro lugar, deixar-me levar pelo que quer que seja... E não, não queria estar ali, queria voltar para a minha vida de autopunição. Era mais confortável não sentir, não me permitir a conviver com os meus tramas e assim a vencê-los.
   Ficamos ali deitados mais algum tempo.
   Cada vez que ela me beijava, sentia-me a trair Laura, mas há medida que o beijo continuava, meus olhos fechavam-se mais e quase me embriagava por completo. Sentia-me numa profunda luta comigo mesmo e começava como que a sentir-me cansado dessa luta.
   Definitivamente, eu precisava ir para minha casa, para o meu espaço, pensar, ficar só.

* * *

   – É melhor eu ir andando. – disse Santiago após mais um período em que havíamos ficado calados a ouvir a música.
   Essa não era a minha vontade, mas não iria colocar entraves, consegui não ser espontânea e dizer o que realmente desejava. Tinha que ser paciente, apesar de isso ser muito difícil para mim.
   – Vou deixar-te ir. – disse como se de facto o pudesse impedir de partir – Mas nem pense fugir de mim, eu irei procurá-lo... – ameacei.
   – Eu sei que irá. – disse acreditando em mim – Elisa, tem... tens que me dar tempo, preciso de tempo... – disse ele com sinceridade.
   – Claro. – disse pensando nele, exclusivamente nele e não podia ser de outra forma.
   Pouco depois levantamo-nos, levei-o à porta. Por mais que me custasse, fiz o que tinha que ser feito.
   Ainda antes dele sair, já com a porta aberta.
   – Fico à espera da surpresa. – disse, para o lembrar, para lhe comunicar que não me havia esquecido.
   – Vai ter que ficar para depois do convite que você me fez. – deduziu ele.
   – Que tu me fizeste... – corrigi. Estava difícil aquela história de trocamos o você por tu.
   – Isso... Que tu me fizeste. – emendou ele.
   – Não mereço um beijo? – perguntei.
   Ele sorriu, beijamo-nos e depois ele partiu.


   Notas Finais
   Agradeço mais uma vez à minha amiga Ivone Moreira a paciência que tem para corrigir o que escrevo.

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6 comentários:

  1. Acabei de ler e adorei...kero mais....nao vejo a hora de o Santiago se soltar mais e mais e viver sem reservas....Mas quanto mais dificil a luta melhor a conquista.

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    1. Calma menina Sónia ;)
      Santiago já fez grandes mudanças na sua vida, com o tempo acho que ele chegará lá...
      Esta semana não devo escrever novo texto, tenho que estudar.
      Beijinho

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  2. Mais um bocadinho bom de ler, e está a ser difícil quebrar aquelas barreiras.... e agora saindo da ficção e transportando-nos para o real!!!! será que ainda há muita gente assim? Tenho as minhas dúvidas....
    Foi engraçado ver também os tus e os vocês... isso acho que acontece com muito boa gente
    Ansiosa por mais um episódio
    Beijinho

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    1. Penso que o facto de se ler esta história aos bocadinhos leva à noção de que muito tempo já passou e na realidade foram apenas escassas semanas.
      Será que ainda há gente assim?...
      Penso que sim, a situação que ele vive é uma situação limite e cada um é como cada qual, não sei onde fundamento a reacção dele, mas creio na possibilidade da existência de alguém assim.
      Quanto aos tus e aos vocês... fiquei todo baralhado! :)
      Como já disse atrás, esta semana não devo escrever um novo episódio, tenho que estudar.
      Beijinho

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    2. Bons estudos então, falei nos tus e vocês, porque se eu não começar a tratar uma pessoa por tu logo de início, é escusado que não sai mais.... posso tratar alguèm por você e ter a mesma intimidade do que com outra que trato por tu.... por isso falei nisso.
      Quanto a haver pessoas assim, talvez haja mas devem ser raras......muito raras
      beijinhos :)

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    3. Obrigado pelo desejo de bons estudos ;)
      Quanto à questão dos tus e dos vocês, a Fermanda tem toda a razão, de facto assim é... Mas no que se refere particularmente a esta história, a partir do próximo capítulo já não haverá tanta confusão. Prometo ;)
      Sim, acredito que sejam raras... mas isto é uma história vinda do meu imaginário e é naturalmente condicionada pela pessoa que sou.
      Beijinho

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     O vídeo que pode ver em baixo é uma curta-metragem chamado Cupidity (ou Cupido, em português).

     A história é sobre uma empregada de mesa apaixonada por um cliente, mas que ele nunca reparou nela. Ela canta no restaurante onde trabalha e todos a aplaudem... menos o cliente por quem ela está interessada.

     Até que ela percebe o real motivo do desinteresse e recebe a ajuda de um Cupido. Veja por si mesmo: clique no play e emocione-se.